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1970-1999
TER FÉ É SER DESTEMIDO

ISKA É O VENTO QUE PASSA
SEM DEIXAR VESTÍGIOS... - WAYNE SHORTER

Ana Maria queria muito ser mãe,

e quando engravidou

ela era a grávida mais feliz do mundo,

muito apaixonada pelo Wayne.

Antes de ela nascer,

senti que ela estaria em uma odisseia.

Então escrevi: "Odyssey of Iska."

Porque eu acredito

que não há começo ou fim,

e nada acaba por causa do que alguém diz.

Gosto da palavra "potencial"
mais do que "começo".

E quando ela estava sendo
monitorada no útero,

lembro que disseram:
"O bebê está em sofrimento."

E ele repetiu:
"O bebê está em sofrimento."

E ela teve o bebê. Ela nasceu muito bem.

Eles deram o nome de "Iska".

Tudo era lindo.

Com três meses, ela tomou as vacinas
contra tétano e coqueluche.

Ela tomou a vacina
e eles tiveram de sair naquela noite...

MARIA LUCIEN
IRMÃ DA ANA MARIA

...e ela me pediu pra tomar conta dela.

E durante a noite,

vi que ela começou a tremer.
"O que é isso?"

Lembro-me de ouvir o berço sacudindo...

desse jeito.

Entrei, e as mãos
e pernas dela faziam assim.

Corremos com ela pro hospital,

e descobriram que ela tinha...

as artérias...

Artérias danificadas no cérebro

e que estava tendo convulsões.

Depois disso,
foi uma convulsão atrás da outra.

O dano cerebral,
eles chamam de doença acima da cabeça.

Mas este dano
nos mostraria a maior lei da vida,

de formas que não sabíamos
que podia ser mostrada.

E saímos de Nova York,
por causa das quatro estações,

a mudança de estação pode ajudar
a provocar a convulsão.

Então, fomos pra Califórnia.

Conversamos com uma das médicas
do Hospital Infantil,

ela disse: "Primeiro, como estão os pais?
Como vocês estão?"

E começaram a falar como os pais
começam a culpar um ao outro.

Foi quando a família do Herbie e a minha
começaram a se ver muito.

Ele tentava ver

como seria no mundo dela.

CAROLINA DOS SANTOS
AMIGA DA FAMÍLIA SHORTER

Isso, para mim, é incrível.

Wayne disse que quando ficava com a Iska,
ele queria emanar pura alegria,

porque na presença dela,

isso era a única coisa que fazia sentido.

Ela não respondia mais a tons agudos.

Ela não respondia à culpa.

Foi um tempo muito difícil para Ana Maria.

Ela era uma pessoa jovem, linda e vibrante

que passava metade do seu tempo
no pronto-socorro...

MATILDA BUCK
AMIGA

...preocupada com a filha
e o marido estava viajando.

Às vezes, ela tinha 15 convulsões no dia,
mas a médica disse que podiam ser mais.

Podia haver 30 ou 40
que não dava pra perceber.

Às vezes, Ana Maria me contava

que foram pro hospital em uma viatura,
furando sinais vermelhos.

Eles sofreram.

Sei que Wayne sofreu porque ele teve
muitos problemas com álcool.

SUSIE SEMPERS
AMIGA

E Ana Maria tinha outros problemas.

Toda a maternidade dela foi

praticamente sem o Wayne,
pois ele estava na estrada.

Trabalhando.

Quando Iska tinha convulsões...

parecia...

Que estávamos sendo provados.

E parecia...

que não podíamos fazer nada

além de ir para o hospital.

Ter fé é não temer nada.

Muitos músicos entravam
e saiam do grupo do Miles,

em parte porque Miles começava
a usar instrumentos elétricos.

Wayne tinha mudado
para o saxofone soprano.

Miles e eu conversamos.

"Quer ter sua própria banda?

Acha que é hora?"

Falei que sim.

Ele disse: "Beleza."

Havia vários tipos
de professores espirituais

vindo para os EUA
e achando

um público engajado,
interessado e faminto.

E entre eles...

JASON BIVINS - AUTOR DE "SPIRITS REJOICE"
JAZZ E RELIGIÃO AMERICANA

...estavam os músicos de jazz
mais exploradores da década.

Na época, jazz significava bandas.

FESTIVAL DE JAZZ DE MONTREUX

A ideia de artista solo ficou de lado...

BOB BELDEN
PRODUTOR, COMPOSITOR, SAXOFONISTA

...e agora eram como bandas de rock,
competiam com elas.

Nós reunimos uma banda
e começamos a ensaiar.

"Como vamos chamar a banda?
Que tal The Audience?" "Não."

Falei: "Que tal The Evening News?

Todos ouvem o noticiário.
O que preocupa a todos de verdade?"

Quase parece verão de novo,

com temperaturas altas de 30°C
em Gainesville.

O clima!
E Joe falou: "A previsão do tempo."

Pensei... Vamos chamar
de "Weather Report".

É! Foi quando concordaram.

O que diferenciava Weather Report
das outras bandas de fusion era

que tinham dois dos melhores
compositores da história.

HAL MILLER
HISTORIADOR DE JAZZ E AMIGO

Com Zawinul e Wayne Shorter.

A qualidade da música
estava acima de tudo.

Weather Report era Joe e Wayne.

Junto com Miroslav Vitous, no começo,

e vários percussionistas.

PETER ERSKINE - PERCUSSIONISTA DE JAZZ
E COMPOSITOR - WEATHER REPORT (1978-1982)

Os músicos viviam mudando.

A única constante era
Wayne Shorter e Joe Zawinul.

Joe era durão. Wayne era gentil.

Joe podia ser bem direto.
Wayne, enigmático.

Joe era extrovertido e opiniático.

E você podia ficar
perto do Wayne por duas horas,

e seria como ficar com Thelonius Monk.

Ou seja, nada.

É uma questão de comunicação.

Sempre precisa de um cara.

Wayne e eu não temos de nos olhar.

É uma questão de magia...

JOE ZAWINUL - TECLADISTA DE JAZZ
E COMPOSITOR - WEATHER REPORT (1970-1985)

...ou do que quiser chamar,
ser capaz de ouvir muito bem.

E é ótimo.
Nos comunicamos muito bem.

Weather Report era yin e yang,

o alívio da tensão de seus estilos
conflitantes jogados juntos,

meio o que acontece seja na fissão

ou fusão de materiais nucleares.

Você ouve a música deles, e é algo...

ALPHONSO JOHNSON - BAIXISTA DE JAZZ
WEATHER REPORT (1973 - 1976)

...que nunca ouviu antes.

Ativa algo na imaginação

que faz você pensar:
"Sim, isso é possível."

É tão singular.

Weather Report foi
um dos primeiros indícios

de como ele nunca ficou parado.

TERENCE BLANCHARD -TROMPETISTA/ COMPOSITOR
THE JAZZ MESSENGERS (1984 - 1988)

O prêmio de Grupo de Jazz do Ano

é bem pesado e provavelmente
um dos mais prestigiosos.

Weather Report foi O Grupo de Jazz do Ano

nos quatro últimos anos.

Em 1974, eles eram um dos grupos
mais meticulosos de jazz.

E a única razão de serem tão populares

é porque compunham
o que o público gostava.

POP GLOBAL TOMA FORMA

SHORTER: DAS RUAS DE NEWARK
A LÍDER DE JAZZ

É uma forma livre de tocar,
e havia uma transição

entre forma livre, hard bop...

LENNY WHITE
BATERISTA DE JAZZ FUSION

...e rock n' roll, que criou
esse movimento de jazz rock.

Ninguém se destacou como esta banda.

As pessoas adoravam a banda.
Garotos a ouviam.

Dava pra cantarolar.

Dava pra dançar.

Ainda tinha raízes.
Ainda era audaciosa,

e especialmente ao vivo.

A cultura de tomar substâncias

estava por todo o mundo das boates.

Quando eu viajava por curtos períodos,
não sabia pelo que ela passava.

O peso da minha ausência, e ela estando
sozinha durante as convulsões...

Acho que uma parte da Ana Maria...

KATHY LUCIEN
SOBRINHA DE ANA MARIA

...não conseguia entender
como isso podia acontecer a ela.

Eu ia cuidar da bebê,

e às vezes ela sumia por dias.

Ligava pra minha mãe:
"Ela não voltou."

E se passavam dias.

Wayne também lidou com isso,
ela não vindo pra casa.

E ele nunca reclamou.

Era demais para eles,
com essa menina preciosa.

Quando é um bebê, é uma coisa,

mas quando seu bebê tem três, cinco,
seis, sete, oito anos

e ainda tem convulsões.

Quando é na sua frente, é bem diferente,

uma facada no coração.

Ana Maria estava pregando algo na parede.

Perguntei o que fazia
e ela disse: "É um butsudan.

Será para meu gohonzon."

E fiquei sabendo que ela virou budista.

Ela teve um motivo real para começar.

Havia algo que ela não podia mudar,

que era muito profundo.
A filha deles, Iska.

Então Herbie disse:
"Por que não tenta um mantra?

Por que não tenta mudar
o carma da sua vida?"

Sabíamos que competíamos

com o som das bandas de rock.

Então, tivemos...

Aí Jaco veio e fechou o negócio.

Jaco era um baixista incrível
e fantástico

e também estiloso.

Jaco era jovem,
então atraía o público jovem.

Os jovens o viam no palco

com aquele troço indígena
de Cochise na cabeça.

Jaco era muito divertido,
às vezes ele pulava do palco.

Tocavam em grandes estádios,
o que ficou bem elaborado.

Jaco Pastorius, uma hora,

jogava talco no palco e fazia um moonwalk.

Um show do Weather Report em meados
dos anos 70 era um evento social.

Gente de todas as classes sociais,
caras com chapéus,

mulheres com minissaias,

e os mais velhos vinham
para ouvir coisas de Art Blakey,

coisas de Miles Davis, os jovens diziam:

"Mal posso esperar pra imitar isso
quando voltar."

Foram a primeira banda a usar
a estética pop nos shows,

porque foram a 1ª banda de jazz

a tocar por duas horas sem parar.

Obrigado.

Esse é Peter Erskine.

Jaco Pastorius.

Josef Zawinul.

Zawinul me disse:

"Não temos muitas regras nesta banda.

Mas temos uma regra bem importante.

Não toque nada óbvio."

Muitas das bandas no começo dos anos 70

eram crias de Miles Davis.

Não tinha como escapar.

Quando a banda tinha
uma coletiva de imprensa,

Joe ou Jaco diziam: "Beleza,
mas sem perguntas sobre Miles.

Na primeira pergunta, vamos embora."

BEM-VINDO
WEATHER REPORT

Fizemos um show e tinha a coletiva.

A primeira pergunta foi sobre Miles Davis.

Não sei quem foi o primeiro.
Joe ou Jaco se levantou,

e o resto foi atrás,

e olhamos um pro outro:
"Qual é minha fala?" E...

saímos da coletiva de imprensa.

A banda cultivava um ar de mistério.

A banda estava ciente de sua mitologia.

Uma hora no show,

Wayne e Joe saíam sozinhos
e tocavam um dueto.

Joe ouvia atentamente o Wayne,

observando cada nota que ele tocava.

Em casa, Iska,
a filha dele, estava tendo convulsões.

Isso estressava Ana Maria.

E também fazia o Wayne se sentir culpado

cada vez que ia ao aeroporto
e partia para outra turnê.

Voltei pra casa uma vez
e Ana Maria estava perdida de novo.

Ana Maria tinha sumindo.

Eu não sabia as provações ou tribulações
que ele passava.

Ele nunca comentou.

Um dia, Ana Maria,

estava na frente de uma caixa com um rolo.

Me ajoelhei ao lado dela e disse:

"Mostre o que está fazendo."

Ela pegou um livrinho e disse:
"Veja se consegue dizer isso comigo."

Era um sutra. Um ensinamento.

Eu fiz isso, estava fazendo isso
e tinha de viajar.

Ia para o Japão.

Ainda em ritmo de festa.

Tocávamos no show e tal.

Estávamos bebendo saquê e tudo mais.

Acordei uma manhã e tentei dizer
essas palavras com ressaca.

Quando Jaco entrou na banda,

fui entrevistá-lo com um gravador
para a Rolling Stone.

Terminamos e ele disse:

"Tenho uma fita
com o próximo álbum da banda.

Tem de ouvir."

Você sabe o que é considerado
o maior sucesso deles,

se não seu melhor álbum,
e quando ouvi, eu disse:

"É um álbum fantástico.

Entretanto, não cai bem
para Wayne Shorter."

É o que acontece
quando bandas ficam ruidosas no palco.

A música fica de lado.

A competição pelo nível de ruído
entre Joe e Jaco,

deixava Wayne de lado,

em termos de espaço,

do que ele podia tocar,
do que poderia contribuir.

Com a banda ficando cada vez mais ruidosa,

Wayne estava lutando
para se encaixar.

Joe nunca foi tímido,

se houvesse uma brecha, ele a usaria.

Havia horas que Wayne se retraía.

Wayne era menos chamativo,
menos falante,

não era de se exibir.
Essa é a magia do Wayne.

A magia de como ele toca.

Havia um novo compositor na banda.

Jaco curtia muito.
Era seu trabalho dos sonhos.

Os contemporâneos do Wayne o conheciam

como uma força dominante musicalmente,
e diziam:

"Não conseguimos ouvir o Wayne.
Wayne não aparece.

Não entendemos por que está
fazendo isso. É um ótimo compositor."

Para tocar um instrumento,
precisa ter um ego.

SONNY ROLLINS
SAXOFONISTA E COMPOSITOR

Senão não estaria tocando
na frente das pessoas.

Por outro lado, tem de sublimar seu ego
pelo bem da música.

Não pode girar em torno de você,

porque quando isso acontece,

então, normalmente, você para de crescer.

Foi um tempo de grande conflito
para Wayne.

Ele tinha se comprometido a ser membro

de um grupo
extremamente popular de jazz fusion.

Mas a música

não tinha mais
um lugar importante em sua vida.

Se estamos sofrendo...

GARY MURIE
AMIGO

...nossos pensamentos,
palavras e ações refletem

este estado de vida.

Com os mantras,

elevamos a um estado de vida superior.

Esse estado de vida mais iluminado
determina as nossas ações.

Wayne cantava mantras horas e horas
por Ana Maria.

Cinco horas num dia, cinco horas no outro.

Ele amava Ana Maria e Iska tanto,

que essa era a forma de Wayne

transformar toda a escuridão manifesta
entre Wayne e Ana Maria.

Wayne era cercado de mulheres,
amigas de Ana Maria.

Ele era cercado pelo som do português.

Maria, Ana e sua sobrinha, Kathy,

elas estavam sempre falando português,
e ele estava acostumado a isso.

Wayne criou um álbum muito bacana,
Super Nova,

e ele queria que eu cantasse nele.

Perguntei: "Tem certeza? Quer mesmo isso?

Estou com medo. Não sei."

Wayne disse:
"Gosto dos seus sons de bambu."

O som da minha voz: "Bambu."

Ana Maria era fã de Milton Nascimento.

Ela encorajava Wayne
a fazer algo com Milton.

E, então, eles fizeram. Trouxeram Milton

e muitos membros
de sua banda do Brasil pra LA,

e ficaram todos juntos
em uma casa por dias,

trabalhando na música que se tornaria
Native Dancer.

A primeira canção
se chamava "Ponta de Areia".

"Ponta de Areia."
Da primeira vez que ouvi,

me levou na hora a um lugar novo.

LARRY KLEIN
MÚSICO, PRODUTOR DE GRAVAÇÃO

Fui mudado, sabe.

Wayne ouvindo o cantor dizendo:

"Já há uma conversa entre nós."

A forma que ele tocava
funcionou com a voz do Milton,

tecendo juntos
com as sensibilidades dos dois,

e foi simplesmente lindo.

WAYNE SHORTER - NATIVE DANCER
COM MILTON NASCIMENTO

A fusão de Wayne e Milton

foi perfeita. Não parecia:

"Isso é brasileiro
e isso é americano."

Parecia fluir junto.

O ano de 1980 foi de festa.

E a banda foi ao Rio, no Brasil,
para o festival de jazz,

e havia uma grande festa.

Wayne seguia Ana Maria.

Ela parecia ter...

Ela estava no braço de um cara mais jovem,

eu não sabia quem era.
Ninguém o conhecia.

E não entendíamos
o que se passava entre eles.

E a única chance que Wayne pôde ser
gentil e amoroso com ela

foi no voo de Rio a Buenos Aires.

Ela estava desmaiada no assento

e ele estava docemente

sussurrando no ouvido dela.

O único momento em que ele pôde ter
sua atenção

foi quando ela estava desmaiada.

Ana Maria, Wayne, talvez outros...

Um grupo pequeno.
Fomos a Palm Springs no fim de semana.

Fomos jantar fora.

Ana foi ao banheiro.

Uma hora depois,
percebemos que não tinha voltado.

Fomos procurar por ela no banheiro.

Lembro que eu disse:
"Wayne, temos de fazer algo."

Ele falou: "Não é necessário."

Com essas palavras: "Não é necessário."

Ele meio que dispensou
que algo podia estar errado.

Acho que Wayne, em geral,
pensa a longo prazo.

Talvez fosse negação. Quem sabe?

Havia um aspecto da personalidade dela

que todos achavam que era loucura.

"Ana Maria é louca. Não se preocupe..."
Sabe: "Ela é tão doida."

-História...
-Ela não deixa

eu ouvir a conversa.
Ela diz que distorço tudo.

-Você distorce tudo?
-Ela disse que eu falei

que falei que ela disse
que falei que ela não disse.

Iska já estava uma mocinha, com 14 anos.

Ela queria comer o tempo todo.
Era uma das questões: o comer.

E eles sempre tiveram
uma empregada para cuidar da casa.

E parece que ela viu
onde a empregada guardava as pílulas.

Ana Maria tomava pílulas o tempo todo.

Ela não sabia o que fazia.
Era como brincadeira, imitação.

E aquilo era o que ela achava divertido,
ou a coisa certa a fazer.

Todos estavam convencidos
que ela não sabia o que fazia.

Eu estava na Polônia.
O telefone tocou e Ana Maria disse:

"Iska, nossa filha morreu. Iska Maria."

Eu ia cancelar o show

e ela disse: "Fique aí.

Vou cuidar do enterro e tudo mais."

Quando Iska morreu,

foi um momento revelador.

Havia um olhar muito intenso
no rosto dele.

Podia ver as sobrancelhas franzidas.

Seu rosto endureceu,

e aí você o via abrindo mão.

Mais tristeza.

Mais tristeza para Ana Maria também.

Mais bebida.

Ela pegava uma garrafa de vodca
e virava tudo.

Mas era como...

Eu nunca tinha visto
aquele tipo de dor nela antes,

e ela nunca tinha demonstrado antes.

Vi naquela hora
que Ana Maria não era louca,

mas que era alcoólatra.

Ele tinha a música,
mas Ana Maria não tinha.

Ana Maria era
uma mãe que estava muito perdida.

Se não fosse o budismo,

Wayne não teria suportado.

Foi a razão de Wayne sobreviver.

E da Ana Maria sobreviver também.

Porque sobreviveu, ela ficou boa.

Ela mudou com a prática do budismo.

Então eu vi...

Uma força que nunca a deixou,
que sempre esteve lá.

A prática do budismo

ensinou Wayne a transformar desafios
em oportunidades.

Veneno em remédio.

Um desses períodos de provação
para Wayne foi quando perdeu Iska,

perdeu a mãe dele

e o seu irmão, um atrás do outro.

Este lugar é onde brincávamos.

Tínhamos um grande espaço
para brincar,

mas era montes e terra.

E fazíamos trincheiras e tal.

E brincávamos de brejo,
dunas de areia e selva.

Alan nunca parou de pensar
na excentricidade como provocação

e quase como arma.

É difícil carregar o fardo

de querer que o mundo reflita

sua estranha visão dele.

E Wayne se reconciliou com a diferença

entre sua bela visão imaginativa do mundo

e o mundo lá fora quando cresceu,
e Alan não.

Ele era dedicado a...
É quase como afundar com o Titanic.

Quando ele foi levado para o hospital
quando sua aorta explodiu,

ela ainda estava falando assim...

"E, sabe, o universo...

Marte e tal, sacou?"

Ainda insistindo.

Foi uma cirurgia de nove horas,

e ele não sobreviveu
ao procedimento no hospital.

Eu estava na Europa e...

Todas essas perdas ocorreram
em um período de cinco anos.

Mas Wayne sempre trabalhava em sua busca

para entender a eternidade da vida.

OS SAPATINHOS VERMELHOS

Wayne sempre adorou o filme
Os Sapatinhos Vermelhos.

No filme, perguntam...

Ele pergunta à bailarina...

-Por que quer dançar?
-Por que quer viver?

Não sei a razão, mas devo viver.

Por que componho música?

É por isso!

Wayne tinha objetivos artísticos
que o afastaram de Weather Report.

Suas composições cresciam em magnitude.

Estavam ficando mais sinfônicas
e orquestrais.

Wayne é visual.

É um dom raro, sabe,

poder pintar retratos com notas.

Debussy era muito visual.

Beethoven, às vezes.

Não consigo pensar em muita gente
que seja onomatopaica assim.

Ouça

Acho que ouço Wayne Shorter

Tocando pelos pinhais

Tenho febre de viajar

Mas sou tão feliz por isso

Acho que Wayne se tornou
a única voz instrumental

que era mesmo capaz

de se igualar a Joni.

Não apenas em timbre e tom,
mas também em significado.

Ele podia receber instrução metafórica.

Isso era algo que o distinguia
dos outros músicos com quem trabalhei.

Certo, uma coisa.
Perguntei: "Você é o pássaro?"

E a primeira coisa que ele tocou
foi magnífica.

Como um pássaro e parou.

E disse: "Não. Vamos com outra."

E falei: "Não, se não continuar,
bato em você."

Em outra canção, eu falei:

"Você entra aqui e sai aqui.

Começa triste, bem triste.

E você sai. Quando você chega lá,
você é bem jovem."

Certo? E ele não recusava
uma instrução assim.

Ele era pictórico e teatral o suficiente.

Ela sabia onde deixar espaços para o Wayne

e Wayne sabia onde tocar.

E, claro,
muito do crédito vai para Larry Klein.

O que mais me impressionava
sobre como ele tocava

era como tocava ao redor das palavras.

Havia a canção "Moon at the Window".

As pessoas não sabem como amar

Provam e descartam

Abrem e fecham

Como uma torneira de banheira

A 1º vez que ele ouviu as palavras...

Mostrando uma discussão
entre uma mulher e um homem.

E pensei:

"Nossa, esse cara é de outro lugar."

Eu pensava nele como um pincel.

Não era como música.

Era mais como pintura, o que é correto.

Então, permito
que ele pinte na minha tela.

Ele pensava mais como roteirista
do que saxofonista.

Lua na janela

Os ladrões são deixados para trás

Lua na janela

Foi em 1991, a última vez em que vi Miles.

WALLACE RONEY - TROMPETISTA DE JAZZ
MILES DAVIS QUINTET (1991)

Sua última apresentação foi
no Hollywood Bowl,

e Wayne Shorter estava lá,
era aniversário do Wayne.

Entrei no camarim
e Miles estava de costas para mim.

Ele estava com a mão no ombro do Wayne

e estava agachado sobre ele, assim.

E sussurrando,
ele falava com Wayne sobre música,

e fiquei fascinada.

Estão, fui de mansinho
para ouvir o que estavam falando.

Miles nunca falava muito.

Ele só dizia uma frase ou duas.

Ele pôs a mão no meu ombro e disse:

"Você precisa de exposição."

Basicamente, ele dizia
pra se colocar à frente.

Senão, ninguém fará isso por você.

E está sendo ofuscado por gente
que não é tão boa quanto você.

Fui para o meu lugar no Hollywood Bowl.

E Miles saiu do camarim,

subiu ao palco e tocou
"Parabéns pra você" para mim.

Como se soubesse que estava indo.
Ele morreu quatro dias depois.

Ele me ligou antes de morrer e disse:

"Escreva algo para orquestra pra mim,

mas coloque uma janela
para que eu possa sair de lá."

Ela sabia como queria viver.

Falou: "Finalmente, devo dizer,

depois do inverno na minha vida,
sinto que chegou a primavera."

E quando falou,
seu rosto e seus olhos se iluminaram.

Da forma que só Ana Maria...

Ela tinha uma luminosidade
que era adorável.

Passarei minha próxima vida com você.

-Roma é a próxima vida, certo?
-É, que...

Neste, no próximo, em qualquer planeta.

Cuido disso.

Ela tem sido
uma ótima esposa para ele.

Ela foi incrível,
eles foram feitos um para o outro.

Como a descreveria em uma palavra?

Espere, quero ouvir.

-Top.
-Certo. Top.

Como descreveria seu marido,
o aniversariante?

Imaginação. Imaginação eterna.

Ela estava 100% limpa

e vivendo uma vida saudável,
maravilhosa e plena.

Eu tinha recém-chegado do Brasil.

Nos tornamos bons amigos.

Na hora que você o via,

sabia que estava conhecendo alguém

que era absolutamente especial.

Fiquei muito amiga da Ana Maria,

porque estava saindo de um relacionamento

e fui morar com eles,

por sugestão da Ana Maria, na época.

Ela ficava dizendo: "Tem uma missão aqui,
não pode voltar pro Brasil."

Consegui um contrato de gravação
com Verve Records.

Escrevi um álbum chamado High Life,

e tínhamos uma orquestra com 34 músicos.

Fizemos turnê. Estivemos na Europa,

arrasando na temporada
de festivais de verão, nos divertindo.

ROB GRIFFIN - GERENTE DA TURNÊ E MIXADOR
WAYNE SHORTER QUARTET

E Ana Maria vinha com a sobrinha, Dalila,

nos encontrar para o concerto em Roma.

Minha filha Dalila era pintora.

Era como Frida Kahlo.
Ela pintava a si mesma.

Ela ia fazer faculdade de arte.

A ideia era
pra Ana Maria levá-la para Roma.

Iriam a museus,

visitariam Florença.

Eu cuidei da casa para eles
por muitas vezes ao longo dos anos.

Era a pessoa em que confiavam
quando saíam da cidade.

Na noite antes de partirem,

Ana Maria pegou...

a mão da Carolina

e mostrou a casa pra ela.

E disse: "Wayne gosta disso assim

e disso deste jeito."

Ela nunca tinha feito isso antes,
desde que se conheceram.

Mas Ana Maria fez isso por toda a casa.

De manhã, ela acordou antes da Carolina

fez um café com leite

e levou pra Carolina na cama.

Carolina sempre fazia isso
para a Ana Maria.

Todos estavam empolgados por elas,

porque era
a primeira vez que Dalila ia pra Itália

e elas iam se divertir muito.

E Maria disse pra ela: "É a minha filha.

Cuide bem dela."

Ela devia estar no voo que foi cancelado.

CANCELADO
ADIADO

E puseram todos daquele voo cancelado
em outro avião.

Mas elas não iam poder
ir de primeira classe.

Ela me disse:
"Consegui mudar para a primeira classe

porque cometeram um erro na TWA.

Agora vamos de primeira classe." Ótimo.

Tivemos uma explosão
a oito, nove quilômetros.

Pareceu uma explosão
à esquerda da minha posição.

Cinco-zero-sete, uma explosão?
Correto, senhor?

Sim, senhor. Explodiu no ar.

E vimos duas bolas de fogo caindo na água.

Muito obrigado.

Voo 800 da TWA, se ouvir, identifique-se.

Voo 800 da TWA, responda.
Voo 800 da TWA, se ouvir, identifique-se.

Entre 3h e 4h,

o telefone tocou no meu quarto de hotel.

A ligação era de Scott Southard,
o agente do Wayne.

Ele disse: "Rob, levante. Acenda a luz.

Jogue água no rosto e volte ao telefone."

Então, fiz isso. Voltei ao telefone,

e Scott me disse que havia uma chance

de que Ana Maria estivesse envolvida
em uma queda de avião.

A Guarda Costeira relata uma explosão

a 16km ao sul de Long Island.

Um 747 que ia para Paris
saindo do JFK em Nova York.

O voo 800 da TWA,
um avião 747 comercial,

explodiu no ar.

Achamos que estavam
em um voo para a Itália,

e este avião que caiu ia para Paris.

Liguei para alguém do grupo

e pedi que se sentasse
fora da suíte do Wayne,

e me avisasse quando ele acendesse a luz.

CASA BRANCA
WASHINGTON

Tentávamos descobrir
se elas estavam naquele voo,

liguei para Sherry, que trabalhava
na Casa Branca na época.

A pessoa que ligava as empresas nos EUA

e o presidente Clinton na época.

Sherry conseguiu a informação
do presidente Clinton.

E mandou um fax.

A lista de passageiros.

Ouvi a notícia no meu quarto de hotel
vendo a CNN,

vendo o horror desta tragédia
se desenrolar

enquanto esperávamos Wayne acordar.

Os franceses fizeram o que podiam.

Longe da mídia, familiares das vítimas
do voo 800 da TWA receberam

suporte médico e psicológico.

Recebi o telefonema.

O sol estava nascendo.

Wayne atendeu a porta

com um ponto de interrogação no rosto.

Ele disse: "Rob, o que foi?"

E eu contei a ele

que Ana Maria estava no avião que caiu.

Eu vi tudo...

nos olhos do Wayne quando lhe contei.

Vi absolutamente tudo,
mais do que tinha visto até então.

Vi tudo que Wayne Shorter é em seus olhos.

Esta é minha irmã eterna.
Nesta vida, na próxima. Eternamente.

E aí, eu vi o avião explodir no ar.

Com as duas pessoas que eu amava tanto.

Dalila era o amor da minha vida.

Meu mundo acabou.

A 1ª coisa que ele disse foi:

"Carolina, você não vai a lugar nenhum,

vai ficar aí."

Falei que não ia a lugar nenhum.

Às famílias dos passageiros do voo 100:

estamos cientes

de que apenas o tempo...

ÚLTIMAS NOTÍCIAS - CNN

...o amor da família e a fé em Deus
podem aliviar sua dor.

CARO WAYNE: HILLARY E EU
SENTIMOS A PERDA DA ANA MARIA,

TODA A NAÇÃO

ESTÁ EM LUTO COM VOCÊ.

SINCERAMENTE,
BILL CLINTON

Paramos a turnê.

Mandamos Wayne e Alphonso
para Los Angeles.

Não ia deixar Wayne viajar sozinho.

Estávamos nervosos ao ir buscá-lo.

Como seria? O que dizer? O que fazer?

Mas ao ver seu rosto,

ele nos olhou
com aqueles grandes olhos lindos

e disse: "Como estão vocês?
Como você está?"

Esse tal acidente,
não existem acidentes, aconteceu.

A vida dela...

era maior que o acidente.

Ela disse: "Quero ir primeiro,
e você fica viúvo.

Vai ser forte e ser viúvo."

A razão da morte ficar acontecendo
é porque não é o fim.

Wayne passou
mais tempo consolando os outros...

quando foi ele quem perdeu a esposa.

Wayne estava determinado

a não ser derrubado por isso.

A tragédia de morrer em um avião,

o que vejo é que a tragédia é temporária.

Há uma constante que devemos buscar,

e a constante está dentro de nós,

quer saibamos ou não,

e esta constante espera
para que nós a conheçamos.

Eu nunca tinha considerado alguém
meu "melhor amigo".

Na verdade, me ocorreu muitos anos depois,

pensando sobre a amizade que temos.

Foi como acordar um dia e dizer:

"Acho que Wayne é meu melhor amigo."

Adoro o fato de ele
e Herbie morarem tão perto

e terem tido
essa longa amizade artística.

RENÉE FLEMING
CANTORA DE ÓPERA E SOPRANO

E uma boa amizade. Acho isso muito raro.

E esses dois viajaram pelo mundo
toda a sua vida adulta,

e mesmo assim, em casa,
se reúnem para relaxar

e fazer música se desejarem.

Eu quase tinha inveja desta amizade,

e eles eram
dois gigantes no mundo da música.

Não apenas do jazz, da música.

Isso...

Vejamos.

Espere, um desses é legal.

Gosto desse.

Sinto que Wayne é, de muitas formas,
como um mentor.

Eu admiro o Wayne.

-É disso que eu gosto.
-Legal?

Sinto como se eu fosse um aluno,
e ele, um sábio.

Acho isso incrível,

porque Herbie fez tanto sucesso...

TERRI LYNE CARRINGTON
PERCUSSIONISTA E COMPOSITORA

...e ser capaz de ser inspirado
por seu amigo é tocante.

-Pronto pra ir?
-Sim.

Certo.

Tem de ver Herbie e Wayne juntos.

Parecem gêmeos. Agem da mesma forma.

Herbie!

Wayne diz algo e o resto da sala...

E aí Herbie diz:

"É isso mesmo."

Toda vez.

Os críticos dizem às vezes
que tocamos algo que é conhecido,

e fazemos variações

e coisas assim.
Bem, é uma canção antiga adornada.

Falei: "Não, quando foi escrita
era toda adornada.

Agora, está ficando nua."

É.

Desculpe.

É um privilégio ter alguém assim
na sua vida,

e quando vejo esses dois,

eles são um exemplo brilhante
do que significa ser humano.

Algumas pessoas sentiram
como se Ana Maria soubesse

que algo ia acontecer,
e então queria alguém de prontidão.

Sobre quem está falando?

Houve muita facilidade
e fluidez com a qual Carolina

entrou nesse papel
após a morte de Ana Maria.

Foi muito importante
no processo de luto do Wayne,

de muitas formas, ter a Carolina lá.

Vou levar o Wayne pra comer algo.

-Obrigada por esperarem tanto.
-Minha nossa.

Com Carolina, no começo,
ela cuidava dele...

Com o tempo,

ele começou a cuidar dela
de outras formas.

Mais profundas e espirituais.

Já tínhamos
uma amizade bela e maravilhosa.

Mas naquela hora,

penso em como nossas vidas
se uniram misticamente

porque eu vinha de algo doloroso

e ele passava por algo doloroso

e nossas vidas começaram a se unir.

Ele disse que sente
que ela me escolheu para estar lá

por causa desse lance místico.

Eu estava aplicando algo filosófico

em que estive trabalhando

a tudo que eu fizesse dali para frente.

Posso finalizar dizendo...

Que estou em busca de algo chamado
felicidade indestrutível.

FIM DO 2º PORTAL

Legendas: Branca Vanessa Nisio

Supervisão Criativa:
Cláudia Santi