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Desde que apareceu,
no leste de África,

a espécie humana migrou para a Ásia
e, depois, para a Europa central.

Este processo, que durou
vários milhares de anos,

pode ser considerado
uma premissa da globalização.

Nestes caminhos, a circulação
dos bens mais vitais e decisivos

permitiria a sobrevivência humana
e a sua adaptação ao planeta.

Por estas rotas, para o melhor
ou o pior, circularia seda, claro,

e religião, língua, refugiados,
artistas, tecnologia e pandemias.

As pessoas criam
famílias, tribos, nações.

Por vezes,
elas têm de proteger a família,

defender a tribo,
aumentar os recursos da nação.

Por vezes, apenas para sobreviver.

Noutras alturas,
pelas razões erradas.

Seja por proteção ou por conquista,
por preservação ou lucro,

estes atos podem requerer
estarmos armados.

E, ao longo dos séculos, perdemos
o nosso propósito e o nosso rumo.

Fogo!

No início, os poderosos mongóis, cujo
império foi fundado em 1526 na Índia,

estavam mais desenvolvidos
do que qualquer estado europeu.

Mas não tinham navios que aguentassem
fogo de artilharia ou levassem armas.

Em vez de construírem
a sua própria frota,

os mongóis decidiram comprar serviços
defensivos dos estados europeus.

Este comércio extremamente lucrativo
levaria à criação

das primeiras corporações
multinacionais:

as Companhias das Índias Orientais
britânica e holandesa.

Os chineses já haviam descoberto
a pólvora

e fundido o primeiro canhão,
em meados do séc. XIII.

Mas sentiam-se tão seguros
no seu lado do mundo,

que se abstiveram de participar
na corrida naval pelas armas.

Portanto, a Europa atrasada
e de poucos recursos do séc. XVI

viria a adquirir um monopólio
de navios de viagens oceânicas

com armas capazes de espalhar morte
e destruição a enormes distâncias.

Os europeus tornaram-se
os mestres de canhões

que matavam muitos antes das armas
dos seus oponentes chegarem até eles.

A arte de matar à distância
tornou-se uma especialidade europeia.

Entretanto,
no chamado terceiro mundo,

armas pequenas ainda conseguiam
estar à altura dos da Europa.

A arma de eleição era um mosquete de
pederneira de antecarga de alma lisa,

que também era manufaturado
por ferreiros em aldeias de África.

Mas estas armas eram lentas
e difíceis de manusear.

Emitiam baforadas de fumo
que revelavam o local do atirador,

para não falar do facto de ele ter
de se levantar enquanto recarregava.

O mosquete era uma arma assustadora
para quem o ouvia pela primeira vez,

mas não alcançava mais de 91 metros.

Daí, as guerras coloniais do início
do séc. XIX eram longas e caras.

A Prússia substituiu estas armas
por espingardas Dreyse de retrocarga.

O primeiro teste foi em 1866,

na guerra austro-prussiana
pela hegemonia na Alemanha.

Em 1884, Hiram Stevens Maxim,
que também inventou a ratoeira,

criou uma arma automática leve, que
disparava nove salvas por segundo.

Ela foi usada pelos alemães
na África Oriental em 1888

e pelos britânicos em 1893
na primeira guerra Matabele.

Ao mesmo tempo,
o aço havia-se tornado tão barato,

que podia ser usado para o fabrico
de armas em grande escala.

Na África e na Ásia, os ferreiros
não conseguiam copiar as novas armas,

pois não tinham acesso
a aço fabricado industrialmente.

No final da década de 1890,
terminava a revolução da espingarda.

Os soldados europeus podiam agora
disparar deitados sem serem vistos,

quinze tiros por segundo, para alvos
até uma distância de 910 metros,

confirmando o mito
da invencibilidade do homem branco.

OS SALTEADORES DA ARCA PERDIDA
STEVEN SPIELBERG, 1981

Infelizmente, as suas balas
não eram sempre eficientes

contra os "selvagens e fanáticos
tribais", como lhes chamavam,

que continuavam a atacar
após serem atingidos várias vezes.

A resposta foi a bala dum dum,
ou bala expansiva,

que recebeu o nome da fábrica
em Dum Dum, nos arredores de Calcutá.

O núcleo de chumbo da bala dum dum
explode no cartucho,

causando ferimentos grandes,
que não saram bem.

Viria a proibir-se o uso de balas
dum dum entre estados civilizados.

Ficariam reservadas apenas
para a caça de animais

e de populações não brancas
e não armadas em guerras coloniais.

SUDÃO

Em Omdurmã, em 1898,

todo o arsenal europeu foi testado
contra um inimigo de maior número

e muito determinado.

Um dos mais alegres narradores
de guerra, Winston Churchill,

vencedor do Nobel da Literatura, era
correspondente do The Morning Post.

"Não se voltará a ver nada
como a batalha de Omdurmã.",

escreveu Churchill num livro
publicado após a experiência.

"Foi o último elo na longa corrente
daqueles conflitos espetaculares,

cujo vívido e majestoso esplendor
fez tanto para dar glamour à guerra.

Este tipo de guerra estava repleto
de emoções fascinantes.", escreveu.

Na manhã de 2 de setembro de 1898,
aconteceu o seguinte:

A RECONQUISTA DO SUDÃO
POR WINSTON SPENCER CHURCHILL

"As bandeiras brancas estavam quase
para além do cume.

No minuto seguinte,
ficariam visíveis às baterias.

Será que se aperceberam
do que ia ao seu encontro?

Eram uma massa densa, a 2548 metros
da 32ª Bateria e das canhoneiras.

Os alcances eram conhecidos.
Era uma questão de maquinaria.

A mente estava fascinada
pelo horror iminente.

Eu previa-o. Em segundos,
destruição invadiria estes corajosos.

Eles subiram o cume e apareceram
em plena vista de todo o exército.

Os seus estandartes brancos
tornaram-nos notórios.

Quando viram o campo do inimigo,

dispararam as suas espingardas
com um rugido e apressaram o passo.

Foi uma visão terrível,
pois ainda não nos tinham ferido

e parecia injusto atacar cruelmente
quando eles não podiam responder."

Churchill achou o plano de ataque
do inimigo sensato e bem pensado,

exceto num ponto vital:

era baseado numa subestimação fatal
da eficácia das armas modernas.

Em cinco horas,

o melhor exército selvagem a encarar
uma potência europeia moderna

foi destruído e dispersado
quase sem dificuldades,

sem grandes riscos, comparativamente,
e perdas para os vencedores.

"Assim terminou a batalha de Omdurmã,

o triunfo mais impressionante

das armas da ciência sobre os
bárbaros.", escreveu Churchill.

Nenhum soldado britânico
esperava ser morto em Omdurmã,

pois aquilo era apenas um elemento
desportivo num jogo esplêndido.

A industrialização de armas também
impactou a colonização dos EUA.

George Washington achava absurdo
depender de armas estrangeiras.

Com bons capitais iniciais, contratos
lucrativos e tarifas nas importações,

ele impulsionou a indústria de armas
dos EUA para o topo.

A primeira corporação estabelecida
pelos Estados Unidos

foi a Springfield Armory
em Massachusetts, fundada em 1777.

Esta introduziu peças substituíveis
e produção em linha de montagem,

fatores chave no arranque
da revolução industrial nos EUA

e no seu estabelecimento enquanto
estado imperialista capitalista.

Ter mais armas
permite mais expansão.

Mais expansão significa mais guerras,
nas quais são precisas mais armas.

Uma bonança lucrativa,

numa relação totalmente incestuosa
entre indústria militar e governos.

MAIS ARMAS - MAIS NAVIOS
MAIS COMIDA

NORMAN A. AUGUSTINE: 1975 - 1977
SUBSECRETÁRIO DO EXÉRCITO

DOV S. ZAKHEIM: 2000 - 2004
SUBSECRETÁRIO DA DEFESA

JAMES G. ROCHE: 2001 - 2005
SUBSECRETÁRIO DA FORÇA AÉREA

DICK CHENEY: 1989 - 1993
SECRETÁRIO DA DEFESA

JOHN C. ROOD: FEV 2018- 2020
SUBSECRETÁRIO DA DEFESA

FRANCIS J. HARVEY: 2004 - 2007
SECRETÁRIO DO EXÉRCITO DOS EUA

A chamada Doutrina Monroe
tornou-se a ordem do dia.

Em 1850, começou só como compromisso
pela segurança das Américas

contra ambições de colonização
europeias.

No tempo, desde Theodore Roosevelt
a John F. Kennedy e Ronald Reagan,

passou a cobrir qualquer perceção de
ameaça contra os interesses dos EUA.

O objetivo passou a ser
o domínio no estrangeiro.

Tal como o reverendo Josiah Strong
argumentou, em 1885,

no seu livro de êxito Our Country:
"Enquanto raça superior, os EUA

tinham uma responsabilidade divina
de controlar o mundo."

Nós temos de falar sobre uma coisa.

Algo que me incomoda e que não
podemos excluir desta história.

Especialmente por representar,
de forma incómoda, o símbolo do mal.

É algo estranho.

Escondido detrás de duas palavras:
Hiroxima, Nagasaki.

Disse-se que foi uma guerra
contra o fascismo.

Disse-se que foi para evitar
mais mortes americanas,

mas morreram centenas de milhares.

A contabilidade é irrefutável.

Num jogo de xadrez, o objetivo
é o xeque-mate ao rei do adversário.

Aí, todas as outras peças
se tornam colaterais.

O seu respetivo valor depende do
valor estratégico a elas atribuído.

Neste caso, o rei é um imperador
e o colateral serão mortes japonesas.

Choque e pavor. Um massacre
determinado por um algoritmo.

Chegou às oito horas
do dia 6 de agosto de 1945.

Ninguém o esperava.
Eram peões num jogo sórdido.

Matar à distância recebia agora
um novo significado.

Não foi necessária explicação.
Não se toleraram gritos. Nem piedade.

Rendição ou morte, no mínimo.

Um ermo interminável de mortos.

É um massacre.
Não um ato de heroísmo.

Porque é que nunca foi chamado
de crime de guerra?

Será porque quem lançou as bombas
foi quem nomeou o ato?

"Nomear é poder.", disse Trouillot.

Dois dias após o bombardeamento de
Nagasaki, o Presidente Truman disse:

"A única língua que parecem entender
é a que usámos para os bombardear.

Ao lidar com um animal,
há que tratá-lo como um animal.

É totalmente lamentável,
mas ainda assim é a verdade."

De facto, não há mais nada a dizer.

Agora sabemos qual é, realmente,
a tarefa

para Kurtz em O Coração das Trevas
de Joseph Conrad,

bem como na batalha de Omdurmã:
"Exterminem todas as bestas."

Pega na chávena. Ótimo.
Porque não tiras a camisola?

Não tu, Henry! O rapaz.

Podes traduzir para ele?

Muito bem. Faz com que pareça
mais natural. Nativo, bem integrado.

Entendes?

Sim, está bem. Muda de posição.

A sério?
Queres mesmo ficar assim deitado?

Bem, ao menos, pega no charuto.

Pega no charuto. Pronto. Rapaz?

Ei! Tu! Rapaz? Olha para ele.
Míralo, por favor.

Claro que sei
que ele não fala espanhol.

Põe uma mão na anca, assim.
Estás a ver? Perfeito.

Mudem de posição.
Levantem-se os dois.

Muito bem. Peguem nas espingardas.
Ele também. Uma cada um.

Pronto. Põe a arma ao ombro.

Ajuda-o, Henry!
Não lhe digas, mostra-lhe.

Não. Sabes que mais?
Põe no outro lado.

Sim. Agora, Henry, olha para longe.

Estás a olhar para o Rio Nilo, ali.
Inspira-te, mostra paixão.

O mundo todo tem estado à tua espera.

Isso mesmo! Fantástico!

Henri Morton
Stanley e Kalulu, 1872

Típico Stanley. Tende a dramatizar de
vez em quando. Não consegue evitar.

O homem mudou-me o nome de Ndugu
M'hali para Kalulu por soar melhor.

Eu nunca lhe disse como gosto
da companhia dele, às vezes.

Mas, ocasionalmente,
ele também é um rufia.

Ele levou-me com ele como criado
à Europa e à América,

mas quando estávamos sozinhos,
éramos só amigos.

Vá-se lá perceber...

O explorador destemido
e o nobre selvagem.

O facto de, na imprensa, me chamar de
"bebé canibal" devia ter-me avisado.

FILMES CASEIROS
FAMÍLIA PECK

Eu fui um bom soldado a vida toda.

O muito bem educado pupilo de uma
civilização ocidental humanística.

Achava que ser maduro era ser culto,
esperto, sofisticado, gracioso.

Aprendi que certos comportamentos
são aceitáveis e outros, não,

e que, quando errava,
tinha de aprender com a experiência.

Os meus pais ensinaram-me que,
como pessoa negra,

nunca devia enveredar
por maus caminhos.

Aprendi a comportar-me, a ser
sociável, apresentável, agradável.

Tinha de negociar diariamente com
um inimigo íntimo, sem nome e vulgar,

enfeitiçado com um complexo
de superioridade.

- Como Frank T.J. Mackey, digamos.
- Não peço desculpa pelo que preciso.

Ou Jordan Belfort.

O LOBO DE WALL STREET
MARTIN SCORSESE, 2013

Eu fui um bom soldado e um bom aluno,

mas nunca consegui entender o que
realmente significa ser superior,

logicamente rebaixando
todos os outros a inferiores.

Um pressuposto singular, no mínimo.

De visita à Europa, descobri pessoas
que acreditavam genuinamente

e estavam ingenuamente convencidas
de que personificavam o mundo.

O mundo todo. E, nesse mundo,
o meu papel era uma nota de rodapé,

ou, como em filmes de Hollywood,
um papel secundário com morte certa

e eliminação descuidada
por um animal qualquer antes do fim.

Para trás!

Vai para trás! Leva o Jimmy daqui!

Não!

Tens de fugir, Jimmy!

Foge!

O Coração das Trevas, de J. Conrad,
tem influência da batalha de Omdurmã.

Conrad começa o romance com o que
se chamou de arsenal do imperialismo:

os canhões do navio,
que disparam contra um continente,

o caminho de ferro, que facilita
a pilhagem do continente,

o barco a vapor, que leva europeus
e as suas armas para o interior.

Esta nova era no imperialismo também
se tornou numa nova era no racismo.

Os europeus começaram a confundir
superioridade militar

com superioridade intelectual
e até biológica.

Foi aí que as coisas ficaram feias.

Já ninguém tinha de fingir.

Muito bem, olhem para aqui.

Por favor.
Tu aí, podes ir mais para a direita?

E tu... Tu, não. Não te mexas.
Tu, um pouco para a esquerda.

Agora dá-lhe uma mão.

Não. Eu disse para lhe dares uma mão.

Então, pega noutra mão! E tu...
Este aqui. Uma mão, outra mão.

Excelente, muito bem.

O tipo grande, de toalha na cabeça:
podes ir mais para trás?

Perfeito.

Excelente. Acho que está.

Eu gosto.

Pode descruzar os braços, por favor?

- Porquê?
- Porquê?

Porque parece provocador.

Só estou a dizer.

Pronto, fique assim. Não quero saber.

FILMES CASEIROS
FAMÍLIA PECK

"O Ocidente quer sobreviver?",
perguntou um presidente dos EUA.

A questão, em si, é desconcertante.

Claramente, eu não estou incluído
neste conceito do Ocidente.

Pertencer à civilização certa traz
alguns direitos, inquestionavelmente.

Eu desconfio de instituições brancas
em geral, religiosas em particular,

mas por algum motivo senti-me atraído
pela ideia do escutismo.

O meu melhor amigo e vizinho
em Léopoldville,

filho de um médico francês,
era escuteiro.

O Robert conhecia
as medidas regulamentares todas.

Até tinha um nome de código,
Corvo Vermelho, pois era ruivo.

Ele ensinou-me os sinais, os nós
e até segredos bem guardados.

A ideia de uma irmandade
dos semelhantes cativou-me,

mas não tanto quanto a ideia
de ter um canivete de bolso

e de poder atrever-me a fazer
fogueiras perigosas na floresta.

Baden Powell foi o fundador
do escutismo.

Durante a segunda guerra Ashanti,
em 1896,

a dois dias de marcha
da capital Kumasi,

enquanto comandante
da tropa avançada

ele recebeu um emissário,
que ofereceu rendição incondicional.

Para sua desilusão, não teve de
disparar um único tiro aos nativos.

Para incitar as hostilidades,
os britânicos planearam provocações.

Prenderam o rei dos Ashanti,
o Rei Prempeh, e toda a família.

O rei e a sua mãe foram forçados a
rastejar de quatro até aos oficiais,

sentados em latas de bolachas,
para demonstrar a sua subjugação.

Mas nem neste momento os britânicos
encontraram uso para as suas armas.

Baden-Powell escreve à sua mãe:

"Gostei muito do passeio
exceto a falta de luta,

que temo colocar de parte
quaisquer medalhas ou decoração."

CONGO, 1895
SUBESTAÇÃO DO LAGO TUMBA

Este é o jovem e ambicioso
Georges Cuvier.

A 27 de janeiro de 1796,

Georges acabara de chegar a Paris
para dar a sua primeira palestra

no recente
Instituto Nacional de França.

Tinha 26 anos.

Cuvier foi sensacional.

Falou do mamute e do mastodonte.

Recentemente, haviam sido descobertos

vestígios destes animais elefantinos
na Sibéria e na América do Norte.

Cuvier demonstrou que não pertenciam
à mesma espécie,

tal como acontece
com os elefantes indiano e africano,

mas que constituíam
espécies distintas, agora extintas.

Agora extintas.

Foram estas duas palavras
que aterrorizaram os ouvintes.

Porque no séc. XVIII,

acreditava-se num universo pronto,
a que nada podia ser adicionado.

Talvez ainda mais importante
para a paz de espírito da Humanidade,

nada podia ser removido dele.

Depois de criada, nenhuma criatura
de Deus pode desaparecer.

"Então, como explicar
estes ossos gigantes

e pedras semelhantes a animais,
que confundem o Homem?",

perguntou Cuvier.

A ideia de Cuvier, de poder haver
espécies que se haviam extinguido,

gerou tamanha resistência, que levou
mais de 100 anos a ser aceite.

Mas ele não explicou como
nem porquê elas se haviam extinguido.

Em 1850, o grande filósofo
liberal Herbert Spencer...

Sim, esse Spencer, escreveu:

"O imperialismo serviu a civilização
tirando raças inferiores da Terra."

As forças que elaboram o grande
esquema da felicidade perfeita,

sem ter em conta
o sofrimento acidental,

exterminam tais secções da Humanidade
como um obstáculo no seu caminho.

Seja ele humano, seja ele besta,
o impedimento tem de ser eliminado."

Aqui, o ser humano foi
expressamente colocado

numa base de igualdade com o animal
como objeto de exterminação.

A sua fantasia de aniquilação podia
ver-se como excentricidade pessoal,

talvez explicada pela morte de todos
os seus irmãos quando era criança.

Uma conclusão calma e reconfortante.

Entra Robert Knox.

Knox havia estudado Anatomia
Comparativa com Cuvier em Paris.

Era escocês, serviu como
médico militar na África do Sul

e fundou uma escola de anatomia
em Edimburgo.

As raças escuras
podem tornar-se civilizadas?

"Devo dizer que não.", diz Knox.

Tudo o que sabemos é que,
desde o início da História,

as raças escuras foram escravas
das de pele clara.

Claro que o que ele quis dizer
com "raça escura" não é fácil saber.

Serão os judeus uma raça escura?
Os ciganos? Os chineses?

"Sinto-me disposto a pensar
que deve haver uma inferioridade,

física e, portanto, psicológica
nas raças escuras.", disse Knox.

"A textura do cérebro é,
acho eu, mais escura em geral,

e a parte branca é mais fibrosa,
mas a minha experiência é limitada."

De facto, Knox diz que só tinha feito
uma autópsia numa pessoa de cor,

o que demonstra, de certo modo,
as limitações da sua experiência.

Thomas Jefferson achava inconcebível
que uma espécie pudesse desaparecer.

Ainda assim, mais de 99 % de todas
as espécies já foram extinguidas.

A maioria em catástrofes,
que quase aniquilaram toda a vida.

Este é o âmbito da nossa história.

Enquanto jovem estudante,
Charles Darwin,

dito pai da biologia evolutiva, ouviu
as palestras controversas de Knox.

No seu livro A Origem das Espécies,
publicado em 1859,

demonstraria que todas as espécies
se adaptam por seleção natural.

Darwin argumentou a favor duma origem
comum a todas as raças humanas.

Apesar da sua tese não confirmar
nem negar as ideias de Knox e outros

sobre qualquer hierarquia
dentro da Humanidade.

a sua teoria da evolução foi,
claramente, útil aos racistas.

A raça tornou-se explicação decisiva
em círculos maiores.

O racismo foi aceite e ficou central
na ideologia imperialista britânica.

Após Darwin, tornou-se aceitável
encolher os ombros ao genocídio.

Ficar perturbado só demonstrava
falta de educação.

O genocídio passou a ser visto como
o resultado inevitável do progresso

e o preconceito contra povos
estrangeiros, que sempre existiu,

recebia agora formato organizado
e validação científica aparente.

ANTIGA FÁBRICA DE MUNIÇÕES
AUSCHWITZ

"Entretanto...", disse ainda Darwin,

"... sobre vida futura,
cada pessoa terá de julgar por si."

Daqui a poucos anos, a superfície
da Terra terá mudado muito.

Vai surgir uma nova era,
que multiplicará as tarefas do Homem.

LONDRES, 1866

A luz vai consumir a escuridão.

Passo a apresentar o meu caro colega,
Dr. Frederic Farrar,

que foi recentemente eleito
membro da Royal Society.

No seu importante livro
Systema Naturae ,

o grande botânico sueco Carl Linnaeus
discrimina com a sua usual subtileza

as características intelectuais e
morais de 4 grandes famílias humanas.

Homo Americanus, Homo Europeus,
Homo Asiaticus,

e Homo Afer.

Ainda assim, acreditamos que estas
e todas as outras raças

se podem reduzir a três
grandes classes ou divisões:

selvagem, semicivilizada
e civilizada.

Só duas raças, a ariana e a semítica
eram civilizadas.

Os chineses pertenciam
à semicivilizada:

haviam sido brilhantes, mas sofreram
de "desenvolvimento interrompido".

As raças selvagens sempre viveram
na mesma ignorância e desventura.

Não têm passado nem futuro,

condenadas, como raças infinitamente
mais nobres foram antes delas,

a uma extinção rápida e inevitável.

De todas as suas miríades,
nunca produziram um único homem

cujo nome seja da menor importância
à história da nossa raça.

A História começa
quando o Homem começa a escrever.

Peguem numa amostra das centenas
de milhões de africanos,

não dos mais degenerados,
como os hotentotes,

mas um negro verdadeiro,
de sangue puro.

Que esperança havia
de ele poder ser civilizado?

Como se atreve a achar a sua
ascendência melhor que a minha?

Parvalhão!

A maioria dos negros terá um declínio
do qual só alguns poderão ser salvos.

Já desapareceram muitas raças.

- Estás louco!
- Por favor, cavalheiros!

Senhoras! Sejamos cívicos!
Respeito.

- Isto é apenas ciência.
- Vai-te foder.

Vai-te foder, duas vezes.

Estas raças, os mais baixos tipos de
humanidade e de traços mais hediondos

de degradação moral e intelectual
estavam condenadas a perecer.

Eu chamo-lhes
selvagens incorrigíveis!

Selvagens incorrigíveis!

Selvagens incorrigíveis!

O que aconteceu mesmo,
quando o conhecimento, a indústria

e o iluminismo
exterminaram as raças inferiores?

Darwin, que viajou até à América
do Sul quando era jovem, sabia.

Ele viu os homens do General Rosas
na Argentina

a chacinar índios,
cobertos de sangue e de vómito.

Ele sabia
que se havia arrancado olhos,

quando um índio cravou os dentes
num dedo e recusou largar.

Que se havia matado mulheres
e feito prisioneiros falar.

Ele deu um nome a isso.

Chamava-lhe "a luta pela vida".

- Apelido?
- Trouillot.

- Nome próprio?
- Rolph-Michel.

- Pronto?
- Com certeza.

Como Roxanne, Michel-Rolph e Sven,
eu também tenho os meus pesadelos.

DEATH MILLS
BILLY WILDER, 1945

Abertura dos campos de concentração

Depois da guerra, Churchill disse:

"Estamos na presença
de um crime sem nome."

Mas Raphael Lemkin,
advogado de ascendência polaca judia,

já havia criado esse nome, em 1943,

juntando "genos", do grego antigo,
que significa raça, tribo, clã,

e "cide", do latim,
que expressa a noção de "matar".

Lemkin inventou a palavra
"genocídio".

Na Biblioteca Pública de Nova Iorque,
na Coleção Raphael Lemkin,

no rolo 3, caixa 2, pasta 1,

há uma lista dos genocídios globais
ao longo da História.

TEXTOS - GENOCÍDIO

1. Alemães vs. africanos
2. Assírios no Iraque

Congo Belga; Bulgária pelos Turcos;
Gregos;

Turcos pelos Gregos; Ciganos; Haiti;
Hotentotes

Índios; Genocídio pelos Janíçaros;
Católicos pelos Japoneses

Judeus Polacos, Russos, Romenos
Coreia

América Latina; Astecas; Iucatão;
Maoris

Menonitas; Nuremberga; Parses;
Sérvios; Eslavos

Sírios; África do Sul; Stedingen
Tasmânia; Austrália

ESCRAVIZAR

MATAR

DESALOJAR

MATAR À FOME

SEPARAR FAMÍLIAS

FORÇAR À CONVERSÃO

REEDUCAR

REEDUCAR, ESCRAVIZAR, FOME,
SOBRELOTAR, MATAR

DESALOJAR, PROIBIR, SEPARAR FAMÍLIAS

MUTILAR, DESTRUIR FETOS,
DESMORALIZAR, SAQUEAR

27 DE NOVEMBRO DE 1868
RIO WASHITA, "TERRITÓRIO ÍNDIO"

O CHEFE CHALEIRA PRETA E A CURANDEIRA
AR-NO-HO-WOK VÃO NEGOCIAR A PAZ

"Há coisas tão cruéis, que chega
terem acontecido.", disse o homem.

"Não é preciso dar-lhes
uma segunda existência narrando-as."

Ele deu uma passa no seu cigarro.

"É isto que penso, pelo menos,
em certos dias.", continuou.

"Noutros dias, penso o contrário."

O passado tem um futuro
que nós nunca esperamos.

NÓS NÃO QUEREMOS RECORDAR

FAZEM-SE LEIS PARA CINGIR OS FRACOS,
PARA SEREM QUEBRADAS PELOS FORTES

Uma das ideias fundamentais
do séc. XIX

é que há raças, povos, nações
e tribos

que estão no processo de extinção.

Ou como disse o primeiro-ministro
inglês Lord Salisbury,

no seu famoso discurso no Albert Hall
a 4 de Maio de 1898:

"Pode dividir-se as nações do mundo
entre vivas e em vias de extinção."

As nações fracas enfraquecem mais
e as fortes ficam mais fortes.

Era a natureza das coisas,
que as nações vivas

invadiriam de forma fraudulenta
o território das em vias de extinção.

Ele disse a verdade.

Durante o séc. XIX,

os europeus haviam invadido
vários territórios por todo o mundo.

A palavra genocídio
ainda não havia sido inventada,

mas o assunto existia.

Joseph Conrad pode não ter ouvido
o discurso do Lord Salisbury.

Não era preciso.

Conrad não podia evitar ouvir falar
do genocídio incessante

que marcou o seu século
mais do que os seus contemporâneos.

Fomos nós que o suprimimos.

Nós não queremos recordar.

Preferíamos que o genocídio tivesse
começado e terminado com o nazismo.

Isto seria, de facto,
mais reconfortante.

Hitler, de nove anos,
também não estava no Albert Hall

quando o Lord Salisbury falou.

Não era preciso.

Ele já o sabia.

PROCISSÃO DO JUBILEU
DA RAINHA VITÓRIA, LONDRES 1897

O ar que Hitler e todos os ocidentais
respiraram na infância dele

estava imbuído da convicção que o
imperialismo é um processo necessário

biologicamente que,
segundo as leis da Natureza,

leva à destruição inevitável
das raças inferiores.

Uma convicção que já havia custado
milhares de vidas humanas

antes do Hitler lhe dar
a sua aplicação altamente pessoal.

Mas, em meados do séc. XIX,

os alemães ainda não haviam
exterminado nenhum povo.

Conseguiam ver o fenómeno de forma
mais crítica do que outros europeus.

Na África do sudoeste, em 1904,

os alemães demonstraram que também
conseguiam dominar uma arte

que os americanos, os britânicos
e outros europeus

haviam exercido ao longo do séc. XIX.

A arte de apressar o extermínio
de um povo de "cultura inferior".

Seguindo o exemplo norte-americano,

o povo Herero foi desterrado
para reservas

e as suas terras de pasto
foram dadas a imigrantes alemães

e empresas coloniais.

TRABALHADORES ASSASSINADOS
OMEG RAILWAY COMPANY, 1904

Durante mais de duas décadas,
o seu líder Samuel Maherero

havia assinado tratado após tratado
com os alemães

e cedido vastas áreas de terreno
de modo a evitar uma guerra.

Mas tal como os americanos não se
sentiram obrigados a cumprir os seus,

os alemães acharam que,
como raça superior,

não tinham a necessidade de obedecer
a tratados que fizeram com nativos.

Tal como na América do Norte,
os planos de imigração alemães

pressupunham que era para libertar
os nativos de toda a terra de valor.

Quando os Hereros resistiram,

o General Adolf Lebrecht von Trotha
ordenou o seu extermínio.

Era para matar qualquer Herero visto
no espaço alemão, armado ou não.

Mas a maioria deles morreu
sem violência direta.

Os alemães simplesmente moveram-nos
para o deserto e selaram a fronteira.

Não se falava da "solução final",
mas era isso que havia em mente.

No relato oficial da guerra,
os oficiais alemães escreveram:

"O exército ganhou a gratidão
de toda a pátria.

A sentença foi cumprida

e os Hereros deixaram de ser
um povo independente."

Oitenta mil seres humanos
morreram no deserto.

Os poucos que restaram foram
condenados a campos de concentração.

Um novo tipo de reclusão inventado
em 1896 pelos espanhóis em Cuba,

anglicizado pelos americanos,

entrou na língua e política alemãs.

Paul Rohrbach escreveu, no seu livro
"Deutsche Gedanke In Der Welt",

publicado em 1912:

"As existências,
sejam elas de povos ou de indivíduos,

que não produzam nada de valor, não
podem reclamar o direito de existir."

Achamos que pessoas casadas,

que têm doenças transmissíveis
não devem ter filhos.

Nenhum casal com a doença
de debilidade mental,

loucura ou epilepsia deve ter filhos.

VENCEDORES DA CATEGORIA
FAMÍLIA GRANDE - ARKANSAS, 1925

VENCEDORES DA CATEGORIA
FAMÍLIA GRANDE - ARKANSAS, 1927

MEDIDAS DE VÉNUS
ALTURA - PESCOÇO - BUSTO

CINTURA - ANCAS - COXAS
BARRIGA DA PERNA

OBESIDADE/CORPULÊNCIA
BAIXO E FORTE - ALTO E MAGRO

BELEZA FÍSICA - FORÇA FÍSICA
SIFILÍTICO - TUBERCULOSO

NEURÓTICO - PARALÍTICO
IMBECIL - SERVIL - ANORMAL

INFETADO - CRIMINOSO - IMORAL SEXUAL
ENXAQUECAS - POBRE - LOUCO

O fascínio pela pureza genética.

Uma energia impressionante
dedicada à classificação das pessoas.

A obsessão patológica
com o conceito de raça,

que, cientificamente, não existe.

CADA UM DESTES PORQUITOS
TEM UM DETERMINANTE BRANCO E UM PRETO

HÁ PESSOAS QUE NASCEM
PARA SEREM UM FARDO NO RESTO

Apesar da encenação cuidadosa,
um gesto inesperado de irritação

não previsto pelo diretor
desta estranha exibição

trairá a dissimulação
e restaurará a dignidade.

SANDAGA, SENEGAL

O que é certo é que
a forma de vida deles está ameaçada.

Terá ele, de facto,
algum direito de existir?

Terá ela?

Terão eles?

Seja como for, agora nós sabemos.

Realmente, quem é que deve julgar?

CONTINUA...

Legendas: Susana Lino
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