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No infantário, no Haiti,
havia uma imagem alegórica

de São Francisco de Assis,
na última página do nosso livro.

O facto de São Francisco ser,
obviamente, branco não importava.

Eu ainda não conhecia diferenças
civilizacionais ou raciais.

Nem tão-pouco sabia
que tais diferenças eram possíveis,

para além do facto
de ele ser santo e eu não.

Eu sabia tanto sobre santos
quanto sobre a cópula e as abelhas.

A minha noção de religião, padres
ou Deus era ingénua, se não ousada.

Acreditava que todos os seres humanos
eram, basicamente, de forma natural,

irmãos e irmãs.

SEMINÁRIO SÃO MARCIAL

Nesse estado eufórico, fui para a
escola primária, instituição jesuíta.

Logo no primeiro dia,
tive uma rixa com outro menino.

Fomos ambos ao sacerdote superior
para sermos disciplinados.

Enquanto esperava pelo que achava
vir a ser uma conversa pacificadora

e um aperto de mão reconciliador,

não tinha dúvidas
em como o resultado seria pacífico.

Eu adorava o meu mundo
de serenidade e compreensão.

Para minha surpresa, o padre entrou,
pegou num músculo seco de boi

que lá tinha e, sem uma palavra,
aplicou-nos três açoites lacerantes.

Eu fiquei tão chocado que não chorei.

Minutos depois, sozinho no recreio,

apercebi-me de que o mundo
não era o que me havia sido dito.

Os rituais, o dogma, o teatro,
eram agora transparentes.

Decidi que não ia ser um imbecil
naquele espetáculo.

Especialmente, se envolvia
santo, padre e açoite nesta ordem.

Depois, deixei de acreditar em Deus.

Eu conhecia um homem. Suficientemente
bem para o chamar de amigo.

Ele era académico.
Um dos mais brilhantes.

Certo dia, soube que ele morrera,
após 10 anos de luta diária.

Um cardiologista havia inserido
um pacemaker avariado no seu coração,

que destruiria as suas funções.

Quando se aperceberam
do erro cometido, era tarde demais.

Michel-Rolph escreveu um livro:
Silencing the Past. Uma obra-prima.

O trabalho de uma vida.

Ao desconstruir a narrativa
dominante, ele mudou tudo.

Conhecimento é poder,

mas "a História é o fruto do poder",
diz Trouillot.

Quem vence no final
é que molda a história.

A 4 de julho de 2012 Trouillot morreu
durante o sono em casa, em Chicago.

Esta história também é a dele.

ÁLAMO
JOHN WAYNE, 1960

"Recordem o Álamo!", dizem eles.

"Mas o recordar pode ser
muito seletivo.", escreve Trouillot.

Os seres humanos participam
na História como atores e narradores.

Entre os atores, encontramos o
General Antonio Lopez de Santa Anna,

um herói nacional mexicano,
que se diz ter participado

em mais batalhas do que o Napoleão
e o George Washington juntos.

Na sua fértil carreira, o Álamo
foi só um interlúdio numa grande maré

de derrotas e vitórias.

A meio de fevereiro de 1836, o seu
exército já havia chegado às muralhas

da velha missão San Antonio de Valero
na província mexicana Tejas.

Uns 200 proprietários de escravos
e milicianos americanos ocupavam

a missão espanhola,
apelidada de O Álamo.

Eles recusaram render-se
à força superior de Santa Anna.

A 6 de março, o General Santa Anna
soou os cornetins que os mexicanos

usavam tradicionalmente
para anunciar um ataque até à morte.

Segundo a celebrada história,
quando ficou claro

que a escolha dos 189 ocupantes
do Álamo

estava entre fugir ou morrer
às mãos dos mexicanos,

o Comandante William Barret Travis
desenhou uma linha no chão.

Os homens que quiserem ficar
atravessem a linha para o meu lado.

Os outros podem ir...
com a minha bênção.

Supostamente, todos atravessaram.

Exceto, claro, o homem que escapou
para contar a história.

Não sobrevivi à Rússia e a Waterloo
para morrer neste deserto.

Obviamente, um francês.

As tropas de Santa Anna invadiram
o forte, matando a maioria.

Uma vitória clara.

Mas a 21 de abril, em San Jacinto,
Santa Anna foi preso

por Sam Houston, o recente líder
da secessionista República do Texas.

Os homens de Houston tinham vincado
o seu vitorioso ataque aos mexicanos

com gritos repetidos:
"Recordem o Álamo!

Recordem o Álamo!"

Com essa referência à velha missão,
eles fizeram história a dobrar.

Como atores, os texanos capturaram
Santa Anna e anularam as suas forças.

Como narradores, deram um novo
significado à história do Álamo.

O que eles não disseram foi que
o General Santa Anna recuperou

e veio a ser o líder do México
mais quatro vezes.

Mas não é isto que a História
recorda.

O General Santa Anna perdeu,
de facto, a batalha do dia,

mas também perdeu a batalha
que havia ganho no Álamo.

Em quanto podemos reduzir o que
ocorreu ao que se diz ter ocorrido?

Importa
se os eventos são factos ou ficção?

A maioria dos europeus
e norte-americanos aprendeu mais

sobre a história da América colonial
e do Oeste americano em filmes

e na televisão do que em livros.

O Álamo?

Isso era uma aula de História
dada por John Wayne, no ecrã.

O que significa isto para as nossas
experiências coletivas?

Será que desejamos sequer
uma história comum?

Será que não importa mesmo
se o Holocausto

é verdade ou mentira?

Será que não faz mesmo diferença
se os líderes da Alemanha nazi

planearam e dirigiram ou não
o massacre de seis milhões de judeus?

Jean Bercu
deportado em fevereiro, 1944, 4 anos

Se seis milhões não importam,
chegaria se fossem dois milhões?

Ou será que alguns de nós
se contentariam com 300 mil?

Se não há nada
a ser provado ou refutado,

de que serve a história?

FILMES CASEIROS
FAMÍLIA PECK

A história da América é escrita
num mundo onde poucos meninos

querem ser índios.

Em 1492, nem a Europa
como a conhecemos,

nem o ser branco como o vivemos
agora, existiam como tais.

Esta é a história que nos contaram.

Cristóvão Colombo nasceu numa família
de mercadores genovesa.

Ele juntou-se a outros navegadores
europeus na competição por ouro

e outros produtos lucrativos,
um mercado dominado por muçulmanos.

Não era segredo que a Terra
era esférica e Colombo achava que

se poderia usar uma rota mais curta
até às ilhas de especiarias valiosas.

Colombo vendeu a ideia à monarquia
espanhola e zarpou com três navios

com rumo direto a Oeste,
ao outro lado do Atlântico.

Em vez dos movimentados portos das
Índias Orientais, Colombo encontrou

um paraíso tropical habitado
pelo povo Taino. O atual Haiti.

Depois, vindos da Península Ibérica,

chegaram mercadores, mercenários,
criminosos e camponeses.

Eles apoderaram-se da terra
e da propriedade do povo indígena,

e declararam os territórios extensões
dos estados espanhol e português.

Estes atos foram confirmados
pelas monarquias

e sancionados pela autoridade papal
da Igreja Católica Romana.

Essa é, mais ou menos,
a história oficial.

E através dessa história oficial,
criou-se uma nova visão do mundo:

a Doutrina da Descoberta.

A dimensão da catástrofe demográfica
que se seguiu

não tem equivalente
na história global.

Em 100 anos, mais de 90 % da
população original deste continente

estaria eliminada.

Apesar dos massacres, da tortura e
de outras atrocidades inconcebíveis,

a grande maioria destas pessoas
não morreu em batalha.

A maioria morreu de doenças, de fome
e por condições de trabalho inumanas,

porque a sua organização social fora
destruída por conquistadores brancos.

Bartolomeu de las Casas, o primeiro
sacerdote ordenado nas Novas Índias,

foi uma das testemunhas
e cronista desta catástrofe.

Matar e escravizar seres, vistos como
humanos, causou-lhe um dilema.

O nosso Senhor Jesus disse:
"Eu sou a verdade e a vida."

A CONTROVÉRSIA DE VALLADOLID

Tentarei dizer a verdade sobre
aqueles a quem tiramos a vida.

Porque a verdade é que
nós estamos a destruí-los.

Desde a descoberta e a conquista
das Índias,

os espanhóis não param de escravizar,
torturar e massacrar os índios.

Desde o primeiro contacto que
estão consumidos pela sede de ouro.

É tudo o que reclamam.

"Ouro! Tragam-nos ouro!"

Tanto que os nativos perguntam o que
eles fazem com o ouro. Comem-no?

Las Casas acreditava na colonização
e também na humanidade dos índios.

Vivia dividido
entre o simbólico e o prático,

incapaz de reconciliar os dois.

Em vez disso,
ofereceu um acordo pobre e ambíguo,

de que se viria a arrepender.

Liberdade aos selvagens: índios.
Escravidão aos bárbaros: africanos.

Está claro que os índios são nossos
irmãos no nome de Jesus Cristo,

dotados de uma alma razoável,
como nós.

Por outro lado, também é certo

que os habitantes de África estão
muito mais próximos dos animais.

A colonização ganhou o dia.

ANO DE 1525 - 14 282 CATIVOS
EMBARCADOS (ACUMULATIVO)

O séc. XVII viu mais envolvimento
da Inglaterra, França e Países Baixos

nas Américas
e no comércio de escravos.

O séc. XVIII seguiu o mesmo caminho,
com mais um toque de perversão:

quanto mais os mercadores europeus
compravam pessoas nas Américas,

mais os filósofos europeus
escreviam e falavam sobre o Homem.

Não havia uma visão única dos pretos,
nem de outro grupo não branco.

Todos presumiam que certos humanos
eram-no mais do que outros.

Visto de fora do Ocidente, o século
da Luz foi um século de obscuridade.

No conceito ocidental, o Homem era
principalmente europeu e masculino.

O resto das pessoas estava
no nível mais baixo desta hierarquia.

Eu não tenho queixas.

Só quero compreender.

Comercializar seres humanos?

Que mente perversa
foi a primeira a pensar nisto?

Trazidos à força
e abusados até à morte.

A escravatura.

Ou o comércio, como a ela se referem,
eufemisticamente.

Um genocídio patrocinado pelo Estado.

O que é que isto diz
acerca de um mundo civilizado?

Não. Eu não tenho queixas.

Eu só quero compreender.

RIO CONGO - 1892

E se, desde o início,
a história estivesse incorreta?

E se não fosse apenas uma questão
de vocabulário ou interpretação?

Talvez um caso de perturbação
coletiva borderline da personalidade?

Muito bem. Vamos lá.

O quê?

E o barco?

O barco deve estar preso em Matadi.

Eu tenho de ir para a minha paróquia.

Já estou dois meses atrasado!

E...?

Espere!

Espere!

Todos juntos.

Mais rápido!

O que é isto?

Mais rápido!

- Mais rápido!
- Você, aí!

- Mais rápido!
- Você!

Pare já, imediatamente!

O que acha que está a fazer
com estas crianças?

Que crianças? Isto é mercadoria.

Mercadoria?

Vão ser treinados pelo Estado
para serem soldados

ou vendidos como escravos.

Ei!

Mais rápido!

Todos juntos!

O diário de bordo de Colombo tem uma
descrição do primeiro avistamento

de terra numa quinta-feira,
11 de outubro de 1492.

"Duas horas após a meia-noite,
apareceu terra, a duas léguas.

Eles arriaram as velas,

fazendo tempo até à luz do dia,
e chegaram a uma ilhota.

Um dia normal.

O isolamento de um momento
fetichizado cria um facto histórico.

Quando descoberto, o outro pode,
por fim, entrar no mundo humano.

O que possa ter acontecido a outros
povos nesse processo é reduzido,

por magia, a um facto natural:
eles foram descobertos.

Mostra-me o caminho, meu Senhor.
Deixa-me percorrer o Teu caminho.

Toca o meu coração
para temer o Teu nome, Senhor.

Para me render à Tua glória.

Mostra-me o caminho, Senhor!

Deixa-me percorrer o Teu caminho!

Toca o meu coração!

Qual é o problema desta vez?
O que fez ele?

Nada. Porquê?

"Rosa, espero que estas palavras
te transmitam todo o meu sentimento.

Espero que elas te encontrem bem.

É tão estranho andar sob este calor
insuportável, quando há quatro meses

eu ainda podia encontrar conforto
nos teus braços.

A loucura nestas terras distantes
é difícil de descrever.

Estou a viver novas experiências.

Há dois dias,
vi cadáveres pela primeira vez.

Aí uma dúzia deles.
Pequenos corpos brancos,

a flutuar para a escuridão.
A flutuar

como se estivessem apenas
a descansar para uma viagem longa.

Não nos cabe a nós
fazer estas escolhas.

Os caminhos do Senhor são infinitos.

Tenho tantas saudades
do templo delicado

escondido na profundeza
das tuas coxas.

Qualquer narrativa história é um
conjunto particular de silêncios.

É um exercício de poder
que torna certas narrativas possíveis

e que silencia outras.

Nesta narrativa forjada,
nem todos os silêncios são iguais.

A nossa tarefa enquanto cineastas,
escritores, historiadores,

criadores de imagens,
é desconstruir estes silêncios.

Desde cedo, a palavra nègre, negro,
entrou nos dicionários de Francês

com nuances negativas
cada vez mais precisas.

Em meados do séc. XVIII, "preto"
já era "mau", quase universalmente.

Nesse intervalo, deu-se a expansão
da escravatura afro-americana.

O ímpeto mais forte na transformação
do etnocentrismo europeu

em racismo científico.

"Os pretos são inferiores. Logo, são
escravizados. Os escravos pretos

portam-se mal. Logo, são inferiores."
A prática da escravatura nas Américas

assegurou a posição do preto
no fundo do mundo humano.

Na Revolução, o etnocentrismo europeu
já se fundira com racismo científico

e formara o panorama ideológico
de ambos os lados do Atlântico.

Os últimos anos do séc. XVIII
chamaram-se a Idade das Revoluções.

Geralmente, pensa-se na Revolução
Americana, que começou em 1763,

e na Revolução Francesa de 1789.

Não na Revolução Haitiana de 1790.

De facto, naqueles anos de mudança,
um certo grupo de escravos pretos,

homens, mulheres e crianças,
erguer-se-ia.

Em apenas 10 curtos anos lutariam
e criariam a nação do Haiti:

a realmente primeira
república livre na América.

A única revolução que materializou
o ideal do Iluminismo:

liberdade, fraternidade e igualdade
para todos.

Em 1790, o colono francês La Barre
escreveu à esposa em França

para reafirmar o estado pacífico
da vida nos Trópicos.

"Não há movimento entre os nossos
negros. Eles nem pensam nisso.

Uma revolta entre eles é impossível.

A liberdade dos negros
é uma quimera."

Meses depois, os eventos crivariam
estes pressupostos racistas.

Uma nação

não é um ato de criação,

mas um processo de crescimento.

Vós tomareis a cidade de Cap-Haïtien,

mas apenas quando estiver reduzida
a cinzas.

E mesmo sobre essas cinzas,
eu enfrentar-vos-ei.

O que se deu no Haiti contradiz
o que o Ocidente alegou sobre si.

O silenciar desta revolução pertence
a uma narrativa de domínio global.

Ainda assim, ela teve um papel
central no colapso do sistema

da escravatura e na libertação
da América Latina.

O Haiti criou o "possível".

A Revolução Haitiana era impensável,
mesmo enquanto acontecia.

Mas impensável apenas no âmbito
de um pensamento ocidental egotista.

Impensável no Ocidente, não só porque
contestou a escravatura e o racismo,

mas pela forma como o fez.

Foi o derradeiro teste das pretensões
universalistas de ambas as revoluções

francesa e americana.

Ambas falharam esse teste.

Confrontado com este "impensável",
Napoleão enviou 65 000 soldados

para restabelecer
a escravatura no Haiti.

O seu exército foi totalmente
derrotado em dois anos,

forçando-o a renunciar aos seus
sonhos e propriedades americanos.

A chamada Compra da Luisiana
duplicou o tamanho dos Estados Unidos

e, com este poder adicional,

aceleraria a conquista
do resto dos territórios índios.

A dívida para com o Haiti
ainda está por pagar.

Eu apaixonei-me em Roma.

Fiz o meu primeiro filme em Berlim.

Os meus pais passaram 25 anos
em África.

A minha filha nasceu no Uganda
e andou na escola em Nova Jérsia.

Um irmão trabalha para os Seminoles,
o outro ganhou um Emmy,

o mais velho passou dois anos
no Vietname e ainda mais com PSPT.

Quem somos nós?

Eu dei aulas de Cinema da Noruega
ao Líbano e de Nova Iorque a Lomé.

Quem sou eu?

Quem sou eu nesta classificação
eurocêntrica pré-aprovada oficial?

A criarmos laços,

a entreajudarmo-nos,

a caminharmos juntos,

a amarmo-nos uns aos outros.

É por isso que amo a juventude.

Outrora, eu segui e venerei um homem
carismático, que traiu o seu povo.

Também fiz um filme sobre ele.

Quem sou eu?

Eu viajei até muitos lugares
e nunca os chamei de "meus",

nem houve violência envolvida.

Lugares onde morei.
Lugares onde trabalhei.

Lugares onde amei
e onde, por vezes, fui amado.

Eu brinquei nas ruas de Léopoldville.
Eu andei de bicicleta em Katanga.

Eu construí casas em Cuba.

Quem sou eu?

OS IRLANDESES COMO MACACOS

Durante o séc. XVI, a Inglaterra
iniciou a conquista brutal da Irlanda

e declarou meio milhão de acres de
terra no norte abertos a povoamento.

No regime colonial britânico,

os irlandeses eram tidos como espécie
menor e naturalmente inferiores.

Eles descendiam dos símios e, claro,
os ingleses descendiam do "homem",

que havia sido criado por Deus
"à sua imagem".

Os ingleses eram anjos.

Mas as suas políticas arruinaram as
indústrias irlandesas da lã e linho.

Os invasores tornaram-se perdedores.

Isso forçou quase ¼ de milhão de
colonos calvinistas escoto-irlandeses

a deixar a Irlanda
para a América do Norte britânica.

Uma das maiores migrações
da História.

Mas como soldados
da construção do império britânico

e mesmo antes de se depararem
com indígenas, os escoto-irlandeses

já haviam praticado escalpelamentos
nos irlandeses.

MÉTODOS DE GENOCÍDIO

MASSACRE, ESTIRILIZAÇÃO, MUTILAÇÃO,
DESTRUIÇÃO DE SÍMBOLOS CULTURAIS

DEPORTAÇÃO, FOME, CONVERSÃO FORÇADA,
SEPARAÇÃO DE FAMÍLIAS, ESCRAVATURA

Theodore Roosevelt disse, sobre os
seus antepassados escoto-irlandeses:

"Eram um povo sinistro, severo. Forte
e simples, poderoso no bem e no mal.

Implacável, vingativo, suspeitoso.
Desconhecedor de pena e de piedade.

Eram os mais adequados a conquistar
e guardar o território selvagem.

Eles constituíam o corpo de oficiais
e eram os soldados do exército,

bem como os milicianos de fronteira,
que limpavam áreas a povoar

através do extermínio de agricultores
indígenas e das suas cidades.

Eles serviam em patrulhas de escravos
e no Exército Confederado.

Consideravam-se o povo escolhido
do convénio,

comandados por Deus a irem para a
selva para construir o novo Israel."

Eu, Franklin Delano Roosevelt,
juro solenemente

que vou executar fielmente o cargo
de Presidente dos Estados Unidos.

Todos os estados-nação modernos
alegam alguma história de fundo

racionalizada, sobre a qual moldam
o patriotismo ou lealdade ao estado.

Que Deus me ajude.

Que Deus me ajude.

Que Deus me ajude.

Segundo a vontade insondável de Deus,
ou se nasce entre os eleitos, ou não.

Ser dos eleitos confere o direito
de implementar a vontade de Deus

e de eliminar os povos nativos.

Como as pessoas não tinham a certeza
se estavam entre os eleitos ou não,

a riqueza material tornou-se
a manifestação da eleição.

Má sorte e pobreza, para não falar de
pele escura, comprovavam condenação.

"A atração de tal doutrina é óbvia.",
disse o historiador Donald Akenson.

Os nativos são imutavelmente
profanos e condenados,

enquanto que o outro
está predestinado à virtude.

Os puritanos que fundaram a colónia
Massachusetts defendiam esta virtude.

Quarenta e um dos "peregrinos",
todos homens, assinaram o pacto,

invocando o nome de Deus,
enquanto fundavam a Primeira Colónia.

Os Estados Unidos são, supostamente,
uma nação de imigrantes,

mas tal suposição tapa uma realidade
de mais de três séculos de violência.

Segundo o mito, os fiéis cidadãos
juntam-se por vontade própria

e juram uns aos outros e ao seu deus
formar e apoiar uma sociedade devota.

Por sua vez, o seu deus concede-lhes
prosperidade numa terra prometida.

Mas os imigrantes não europeus, por
mais que se esforcem para demonstrar

que são trabalhadores e patrióticos
como os descendentes dos colonos,

são suspeitos.

Para serem aceites, têm de provar
a sua fidelidade ao convénio.

De abraçar o ser branco e desprezar
os descendentes de africanos escravos

e os indígenas e os mexicanos,
nenhum dos quais é imigrante, claro.

Foi uma noite confusa. Já não era
quinta, mas ainda não era sexta.

Este é Howard Zinn.

Provavelmente, o historiador
mais decisivo deste país.

Esta é Roxanne Dunbar Ortiz.
Uma historiadora também respeitada.

O pai dela era escoto-irlandês e ela
esteve casada com um poeta famoso.

Howard e Roxanne são amigos.

Quando Howard publicou A People's
History of the United States,

o livro tornou-se logo um marco na
desconstrução da narrativa oficial.

Finalmente, um académico branco
notável estava a questionar o sonho

e a contar a história
de forma diferente.

Roxanne perguntou-lhe porque não
incluíra partes da história indígena.

Howard escutou em silêncio.
Depois, confessou:

"Eu não sei como escrevê-la.
Porque não a escreves tu?"

Roxanne assim o fez, colocando
os nativos americanos no centro

e sabendo que ia ser doloroso.

Eu conheci o Howard
bem antes de conhecer a Roxanne.

Quando conheci a Roxanne,
o Howard havia morrido anos antes

e o Howard nunca leu
a versão final do livro de Roxanne.

Com Howard, Roxanne e Michel-Rolph
aprendi como com os nossos anciãos.

Com eles, aprendi a preferir
o coletivo em vez do individual.

A procurar o "nós"
antes de satisfazer o "eu"

e a pôr-me sempre dentro do mundo,
não acima dele.

Anos de aprendizagem.

O CASO DE ANDREW JACKSON

Contrariamente ao que foi afirmado
sobre o nascimento dos Estados Unidos

e o seu domínio do continente,

não foram as armas melhores,
nem a tecnologia,

nem um número superior de colonos,
nem as doenças,

ou seja, "armas, aço e germes",
que foram os responsáveis.

O fator determinante deste domínio
foi a vontade

de eliminar civilizações inteiras,
de modo a possuir as suas terras.

O caso de Andrew Jackson,
o 7º Presidente dos Estados Unidos,

é uma história significativa.

Andrew Jackson é prezado na maioria
dos textos de História dos EUA,

num capítulo intitulado "A Era de
Jackson", "A Era da Democracia",

"O Nascimento da Democracia,
ou semelhantes.

A sua família personificou a migração
escoto-irlandesa protestante.

Ele foi um especulador fundiário
influente no Tennessee, político,

e proprietário rico de uma plantação
perto de Nashville com 150 escravos:

The Hermitage.

Jackson comprou a sua primeira
escrava, uma jovem, em 1788.

Ele tinha 21 anos.

Aos 29, o Tennessee tornou-se estado,
e ele foi eleito o primeiro senador,

posto que deixou após um ano para ser
juiz no Supremo Tribunal estatal.

Enquanto juiz, estava numa posição
melhor para apreender terras nativas.

Foi em 1801 que Jackson passou
ao comando da milícia do Tennessee

e começou a sua carreira militar
de massacre de índios.

Em 1821,
já considerado herói nacional,

Jackson tornou-se governador
militar do território da Florida.

Em 1829,
Jackson tornou-se presidente.

Aí, já estava claro que a nova nação
chamada Estados Unidos da América

precisava de uma política decisiva e
clara para os primeiros americanos.

Afinal, a terra era deles.

Ano de 1830. O Congresso aprova
a Lei de Remoção dos Índios.

Andrew Jackson aprovou logo
à pressa a deportação forçada

de todos os povos indígenas
a este do Mississípi

para aquilo a que chamariam
de Território Índio.

Os Seminoles, na Florida, foram uma
das nações que resistiu fortemente.

Jackson enviou o exército.

Como de costume, quando uma potência
decide "resolver" um problema,

especialmente se incluir
a remoção de povos inteiros,

as coisas ficam feias.

GENOCIDAS

RESPONSABILIDADE
INTENÇÃO

MOTIVAÇÃO
SENTIMENTOS DE CULPA

DESMORALIZAÇÃO

O contramestre General Thomas Sidney
Jesup foi comandante dessa força.

Tornar-se-ia a personificação
de todos os capangas da História.

TENTATIVA DE ASSASSINATO
DO PRESIDENTE ANDREW JACKSON

TRATADO DE HICKORY GROUND, 1814

Um tratado é um acordo
assinado por duas nações,

por forma a estabelecer fronteiras
e condições de sobrevivência mútua.

CONSELHO DE MEDICINE LODGE CREEK
KANSAS, 1867

Mas, ainda assim, entre 1832 e 1871,

os índios americanos eram vistos
como tribos domésticas dependentes.

Portanto, qualquer tratado requeria
a aprovação do Congresso dos EUA.

Andrew Jackson disse ao Secretário
da Guerra, John Caldwell Calhoun,

escoto-irlandês, que via a
escravatura como um mal necessário:

"Acho que fazer tratados com índios
não só é inútil como é absurdo."

De facto, aceitar o termo "tratado"
era aceitar a noção de "nação".

TRATADOS HOMOLOGADOS
PELO SENADO

Durante o período jacksoniano,
ou "nascimento da república branca",

os Estados Unidos fizeram 86 tratados
com 26 nações indígenas

entre Nova Iorque e o Mississípi.

Todos eles forçaram entrega de terras
e incluíram remoções.

E, depois,
eles assinaram tratado após tratado,

violados uns a seguir aos outros.

O famoso aristocrata e escritor
francês Alexis de Tocqueville

testemunhou parte do que se viria
a conhecer como Caminho das Lágrimas.

Ele esteve presente na deportação
do povo Choctaw.

"Eu vi vários dos casos de miséria
que tenho vindo a descrever.

Eu testemunhei sofrimentos
que não tenho o poder de descrever.

Não choraram. Não soluçaram.
Ficaram todos em silêncio."

Vida? Raça? Patriotismo?

O que é uma bandeira?

Um pedaço de tecido
pelo qual se morre ou se mata?

Expliquem em duas palavras.

CONTINUA...

Tradução: Susana Lino
www.sdimedia.com